(Revista Planeta n.º 162 - março 86)

Os textos litúrgicos aqui apresentados fazem parte do jogo de Ifá, no qual seu senhor e oráculo, a divindade Orumilá, nos ensina mitos e tradições que foram mantidos através do próprio jogo. Esses conhecimentos, transmitidos a todos oralmente, hoje se tornaram verdadeiras escrituras sagradas (1 - Atualmente, vários pesquisadores já registraram em livros as lendas colhidas oralmente entre os iniciados).

Através deles entendemos o porquê de certos ritos e preceitos usados e conservados no dia-a-dia dos cultos. Vários textos explicam o mesmo fato ou se complementam, e à vezes de forma diferente e aparentemente contraditória; mas isto é reflexo de se terem originado em diferentes regiões. De uma forma ou de outra, porém, chegam aos mesmos fundamentais conceitos religiosos.

ORIGENS

De quatro em quatro dias (uma semana iorubana), Iku (a morte) vinha à cidade de Ilê Ifé munida de um cajado (opá iku) e matava indiscriminadamente as pessoas. Nem mesmo os orixás podiam com Iku.

Um cidadão chamado Ameiyegum prometeu salvar as pessoas. Para tal, confeccionou uma roupa feita com várias tiras de pano, em diversas cores, que escondia todas as partes do seu corpo, inclusive a própria cabeça, e fez sacrifícios apropriados. No dia em que a Morte apareceu, ele e seus familiares vestiram as tais roupas e se esconderam no mercado.

Quando a Morte chegou, eles apareceram pulando, correndo e gritando com vozes inumanas, e ela, apavorada, fugiu deixando cair seu cajado. Desde então a Morte deixou de atacar os habitantes de Ifé.

Os babalaôs (adivinhos e sacerdotes de Orumilá) disseram a Ameiyegum que ele e seus familiares deveriam adorar e cultuar os mortos por todas as gerações, lembrando como eles venceram a Morte.

ORIGEM DOS OIÊ MASCULINOS

Havia na cidade de Oyó um fazendeiro chamado Alapini, que tinha três filhos chamados Ojéwuni, Ojésamni e Ojérinlo. Um dia Alapini foi viajar e deixou recomendações aos filhos para que colhessem os inhames e os armazenassem, mas que não comessem um tipo especial de inhame chamado 'ihobia', pois ele deixava as pessoas com uma terrível sede. Seus filhos ignoraram o aviso e o comeram em demasia. Depois, beberam muita água e, um a um, acabaram todos morrendo.

Quando Alapini retornou, encontrou a desgraça em sua casa. Desesperado, correu ao babalaô que jogou Ifá para ele. O sacerdote disse que ele se acalmasse, e que após o 17º dia fosse ao ribeirão do bosque e executasse o ritual que foi prescrito no jogo. Ele deveria escolher um galho da árvore sagrada atori e fazer um bastão (assim é feito o ixã). Na margem do ribeirão, deveria bater com o bastão na terra e chamar pelos nomes dos seus filhos, que na terceira vez eles apareceriam. Mas ele também não poderia esquecer de antes fazer certos sacrifícios e oferendas.

Assim ele o fez; seus filhos apareceram. Mas eles tinham rostos e corpos estranhos; era então preciso cobri-los para que as pessoas pudessem vê-los sem se assustarem. Pediu que seus filhos ficassem na floresta e voltou à cidade. Contou o fato ao povo, e as pessoas fizeram roupas para ele vestir seus filhos.

Desse dia em diante ele poderia ver e mostrar seus filhos a outras pessoas; as belas roupas que eles ganharam escondiam perfeitamente sua condição de mortos. Alapini e seus filhos fizeram um pacto: em um buraco feito na terra pelo seu pai (ojubô), no mesmo local do primeiro encontro (igbo igbalé), ali seriam feitas as oferendas e os sacrifícios e guardadas as roupas, para que eles as vestissem quando o pai os chamasse através do ritual do bastão.

Seguindo o pacto e as instruções do babalaô, de que sempre que os filhos morressem fosse realizado o ritual após o 17º dia, pais e filhos para sempre se encontraram. E, para os filhos que ainda não tiverem roupas, é só pedir às pessoas que elas as farão com imenso prazer.

Esta lenda é rica em detalhes, nos explica vários ritos e títulos utilizados no culto.

MITOS OYÁ E EGUM

Oyá não podia ter filhos, e foi consultar o babalaô. Este lhe disse, então, que, se fizesse sacrifícios, ela os teria. Um dos motivos de não os ter ainda era porque ela não respeitava o seu tabu alimentar (evó) que proibia comer carne de carneiro. O sacrifício seria de 18.000 mil búzios (o pagamento), muitos panos coloridos e carne de carneiro. Com a carne ele preparou um remédio para que ela o comesse; e nunca mais ela deveria comer desta carne. Quanto aos panos, deveria ser entregues como oferenda.

Ela assim fez e, tempos depois, deu à luz nove filhos (número místico de Oyá). Daí em diante ela também passou a ser conhecida pelo nome de 'Iyá omo mésan', que quer dizer 'a mãe de nove filhos' e que se aglutina 'Iyansan'.

Há outra lenda para explicar o mito de Iansã: Em certa época, as mulheres eram relegadas a um segundo plano em suas relações com os homens. Então elas resolveram punir seus maridos, mas sem nenhum critério ou limite, abusando desta decisão, humilhando-os em demasia.

Oyá era a líder das mulheres, e elas se reuniram na floresta. Oyá havia domado e treinado um macaco marrom chamado ijimerê (na Nigéria). Utilizara para isso um galho de atori (ixã) e o vestia com uma roupa feita de várias tiras de pano coloridas, de modo que ninguém via o macaco sob os panos.

Seguindo um ritual, conforme Oyá brandia o ixã no solo o macaco pulava de uma árvore e aparecia de forma alucinante, movimentando-se como fora treinado a fazer. Deste modo, durante à noite, quando os homens por lá passavam, as mulheres (que estavam escondidas) faziam o macaco aparecer e eles fugiam totalmente apavorados.

Cansados de tanta humilhação, os homens foram ter com um babalaô para tentar descobrir o que estava acontecendo. Através do jogo de Ifá, e para punir as mulheres, o babalaô lhes conta a verdade. Ele os ensina como vencer as mulheres através de sacrifícios e astúcia.

Ogum foi o encarregado da missão. Ele chegou ao local das aparições antes das mulheres. Vestiu-se com vários panos, ficando totalmente encoberto, e se escondeu. Quando as mulheres chegaram, ele apareceu subitamente, correndo, berrando e brandindo sua espada pelos ares. Todas fugiram apavoradas, inclusive Oyá.

Desde então os homens dominaram as mulheres e as expulsaram para sempre do culto de Egum; hoje, eles são os únicos a invocá-lo e cultuá-lo. Mas, mesmo assim, eles rendem homenagem a Oyá, na qualidade de Igbalé, como criadora do culto de Egum.

Convém notar que, no culto, Egum nasce no bosque da floresta (igbo igbalé). No Brasil, no ilê awo, ele nasce no quarto de balé, onde são colocadas oferendas de comidas e realizadas cerimônias aos Eguns.

Oyá é também cultuada como mãe e rainha de Egum, como Oyá Igbalé. E, como nos explica a lenda, Oyá, a floresta e o macaco estão intimamente ligados ao culto, inclusive em relação à voz do macaco como modo de o Egum falar.

ODU TORNA-SE IAMI

Nos primórdios da criação, Olodumarê, o Ser Supremo que vive no orun, mandou vir ao ayê (universo conhecido) três divindades: Ogum (senhor do ferro), Obarixá (senhor da criação dos homens) (2 - Um dos orixás funfun, isto é, orixás que têm como principal preceito o uso do branco nos ritos e nas oferendas; em algumas regiões Obarixá é adotado como um cognome de Oxalá) e Odu, a única mulher entre eles. Todos eles tinham poderes, menos ela, que se queixou então a Olodumarê. Este lhe outorgou o poder do pássaro contido numa cabaça (igbá eleiye) e ela se tornou então, através do poder emanado de Olodumarê, Iyá Won, nossa mãe para eternidade (também chamada de Iami Oxorongá, minha mãe Oxorongá). Mas Olodumarê a preveniu de que deveria usar este grande poder com cautela, sob pena de ele mesmo repreendê-la.

Mas ela abusou do poder do pássaro. Preocupado e humilhado, Obarixá foi até Orumilá fazer o jogo de Ifá, e ele o ensinou como conquistar, apaziguar e vencer Odu, através de sacrifícios, oferendas e astúcia.

Obarixá e Odu foram viver juntos. Ele então lhe revelou seus segredos e, após algum tempo, ela lhe contou os seus, inclusive que adorava Egum. Mostrou-lhe a roupa de Egum, o qual não tinha corpo, rosto nem tampouco falava. Juntos eles adoraram Egum.

Aproveitando um dia quando Odu saiu de casa, ele modificou e vestiu a roupa de Egum. Com um bastão na mão, Obarixá foi à cidade (o fato de Egum carregar um bastão revela toda a sua ira) e falou com todas as pessoas. Quando Odu viu Egum andando e falando, percebeu que foi Obarixá quem tornou isto possível. Ela reverenciou e prestou homenagem a Egum e a Obarixá, conformando-se com a supremacia dos homens e aceitando para si a derrota. Ela mandou então seu poderoso pássaro pousar em Egum, e lhe outorgou o poder: tudo o que Egum disser acontecerá. Odu retirou-se para sempre do culto de Egugun.

O conjunto homem-mulher dá vida a Egum (ancestralidade), mas restringe seu culto aos homens, os quais, todavia, prestam homenagem às mulheres, castigadas por Olodumarê através dos abusos de Odu. Também por esta razão é que as mulheres mortas são cultuadas coletivamente, e somente os homens têm direito à individualidade, através do culto de Egum.